Homenagem a José Afonso da Silva, um jurista que não leiloa sua opinião jurídica

Palmas merecidas para o maior constitucionalista do país

Conrado Hübner Mendes
Folha

Jurista público não é produto num livre mercado. Não é vedete nem lobista, não dedica tempo à adulação de autoridade. Não vai a encontros nem subscreve atos disparadores de conflitos de interesse. Não só porque recusa o oba-oba da bajulação gratuita, mas porque entende e respeita a ética da profissão. Sabe que o problema não desaparece quando a promiscuidade se normaliza.

Jurista público não aceita vender opinião jurídica da qual discorda, não oferece consultoria jurídica para o fim da democracia e não se deixa envolver em festivais juspornográficos contra a dignidade da profissão. Não aceita oferta para mudar de lado e não negocia valores políticos ou monetários.

INDEPENDÊNCIA – Entende que elaborar argumento jurídico exige tanto fibra intelectual quanto independência moral. Sabe que a profissão jurídica privada precisa enfrentar a tensão incontornável entre o interesse particular em honorários e o compromisso sincero com a democracia constitucional e o interesse público. E que a carreira jurídica estatal obedece a tetos, não só éticos, mas remuneratórios.

O jurista público, enfim, pratica virtudes censuradas e desencorajadas na era da advocacia lobista e da magistocracia rentista e nepotista à luz do dia.

José Afonso da Silva completou 100 anos e recebeu homenagem da Faculdade de Direito da USP nesta quinta-feira, dia 8. Sua biografia é conhecida. Trabalhou na roça, foi padeiro e alfaiate. Fez supletivo e se formou aos 32 anos nessa faculdade onde mais tarde se fez professor titular. Foi procurador do Estado e secretário de Segurança Pública em São Paulo.

PERDEU A ELEIÇÃO – Candidato ao Congresso constituinte, mas sem dinheiro para a campanha, não se elegeu. “Um grande empresário me ofereceu dinheiro e eu recusei.”

Ainda assim se consagrou como cérebro jurídico da Constituição de 1988 por ter contribuído na sua redação, como assessor jurídico de Mário Covas, e por ter educado, através de seus livros, gerações de juristas na interpretação desse texto.

Orgulha-se por ter ajudado Mário Covas a construir o “fenômeno raro” de uma “Constituição razoavelmente progressista” diante de uma hegemonia conservadora, produto de um processo que, apesar de tudo, não conseguiu “escamotear totalmente o interesse popular”.

DIREITOS SOCIAIS – Esse interesse popular se traduziu na previsão de direitos sociais e trabalhistas, no dever de reduzir desigualdades, promover a função social da propriedade e proteger direitos territoriais indígenas.

A quem pede uma Constituição mais “enxuta”, responde: “Querem que saiam de lá os direitos sociais, não querem que saia o direito de propriedade. Querem que saiam o direito à saúde, o direito do índio, o direito ao meio ambiente. Se você tirar tudo isso ela fica muito enxuta. Mas aí o povo fica desamparado. Todo conservador quer uma Constituição enxuta que garanta apenas seu direito, o direito da elite”.

JURISTA ÍNTEGRO – Mas José Afonso merece ser celebrado não apenas pela biografia exemplar de jurista público. Ele nos oferece, acima de tudo, um símbolo de integridade numa profissão miseravelmente degradada.

A profissão jurídica que se deixa corromper a pretexto da defesa de clientes ou de interesses indisfarçadamente particulares e corporativos não encontra na vida de José Afonso da Silva um consolo para a consciência.

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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG –
Belíssimo artigo, homenageando quem realmente merece. O professor José Afonso da Silva é um nome na História da USP. (C.N.)

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