
Direita tenta construir um discurso profundamente contraditório
Marcelo Copelli
Revista Forum
Com a recente investida tarifária de Donald Trump contra o Brasil — que impôs 50% de sobretaxa sobre produtos como aço, carne, café e alumínio — foi possível observar como a desinformação pode ser uma ferramenta estratégica de poder no cenário político internacional.
A iniciativa do presidente americano desencadeou não apenas uma crise diplomática, mas também acendeu o alerta sobre o uso coordenado de narrativas falsas e contraditórias por setores da direita brasileira. O episódio, que deveria ser instrumento de mobilização para um debate sério sobre soberania e interesses nacionais, vem sendo transformado em palanque político e laboratório de manipulação discursiva, especialmente por grupos bolsonaristas empenhados em blindar suas lideranças e desviar o foco das responsabilidades efetivas.
CONTRADIÇÃO – A medida de Trump não é apenas agressiva, mas especialmente inusitada, pois, sob o falacioso discurso de um suposto desequilíbrio comercial entre os dois países, justificou a tarifa como uma reação à “injustiça econômica” e ao que chamou de perseguição judicial ao ex-presidente Jair Bolsonaro. A contradição é nítida, uma vez que os Estados Unidos, segundo dados do próprio Departamento de Comércio norte-americano, fecharam 2024 com um superávit de mais de US$ 7 bilhões em sua balança com o Brasil. Ou seja, não há déficit.
Além disso, não há evidência de qualquer bloqueio institucional ao comércio ou às empresas norte-americanas atuando em solo brasileiro. A explicação, porém, está mais na política ideológica transnacional que une Trump e Bolsonaro, e menos na economia propriamente dita.
Diante dessa realidade, a reação da direita brasileira foi transformar o ataque econômico em peça de propaganda política. Em vez de reconhecer o gesto como um ato de interferência nos assuntos internos do país — algo que fere frontalmente a soberania nacional, ratifique-se —, lideranças bolsonaristas trataram, por meio de sua corriqueira estratégia de ação, de reinterpretar os fatos, operando em dois registros paralelos.
TÁTICA DISSONANTE – De um lado, dizem que a tarifa seria uma espécie de “vingança justa” contra o governo Lula, por ter, supostamente, perseguido Bolsonaro judicialmente. De outro, sugerem que o Brasil não é alvo, mas culpado (!) por ter adotado políticas comerciais “antiamericanas”, ainda que nenhuma prova sustente essa tese. É a velha tática dissonante: justificar e culpar ao mesmo tempo.
Como resultado, constrói-se um discurso profundamente contraditório — mas funcional. Se a tarifa é uma retaliação política, então se admite que há ingerência estrangeira em defesa de um aliado ideológico. Se é uma medida comercial legítima, então o governo brasileiro é pintado como responsável por romper o equilíbrio.
Essa ambiguidade proposital viabiliza que diferentes públicos sejam atingidos por versões que os “confortem”: os mais ideológicos encontram em Trump um defensor de Bolsonaro contra as “injustiças do sistema”; os mais econômicos recebem uma explicação aparentemente técnica, embora completamente inverídica. Ambas as versões, no entanto, têm o mesmo objetivo: eximir Bolsonaro de qualquer responsabilidade e minar a legitimidade do atual governo.
AUTONOMIA – Nesse cenário, a distorção do conceito de soberania é ainda mais grave. Quando o presidente Lula anunciou que responderia à altura, com medidas de reciprocidade previstas na legislação, a direita passou a acusá-lo de “escalada diplomática” e “nacionalismo barato”. Uma completa inversão da realidade, pois, ao reagir à agressão tarifária com firmeza e dentro dos marcos legais, o Brasil reafirma sua autonomia e a defesa de seus próprios interesses — exatamente o que se espera de um Estado soberano.
Mas a retórica da direita transformou esse gesto em fragilidade, invertendo os polos de vítima e agressor, de quem defende o país e de quem o entrega ao jogo geopolítico alheio. A imprensa internacional, por sua vez, não comprou a farsa. Veículos como Financial Times, Le Monde, The Guardian e El País foram unânimes em apontar o caráter político-eleitoral da medida.
Alguns foram além, qualificando-a como “dramática”, “extraordinária” e “sem precedentes”, uma vez que a ação de Donald Trump tem menos a ver com balança comercial e mais com sua frustração diante da aproximação brasileira com os BRICS e o isolamento crescente de seu aliado Bolsonaro. Some-se a isso o fato de que o uso das tarifas como arma de pressão política aponta para um precedente perigoso, capaz de comprometer décadas de regras multilaterais no comércio internacional.
DESINFORMAÇÃO – É nesse contexto que a desinformação cumpre papel central: anestesiar a opinião pública, esvaziar o debate de conteúdo e ocultar os verdadeiros riscos da submissão ideológica. Ao transformar uma clara violação da soberania em “defesa da honra bolsonarista”, a direita brasileira demonstra que está menos preocupada com o país e mais comprometida em manter seu projeto de poder. E, para isso, distorce-se até mesmo a ideia de Brasil.
Não se trata apenas de uma disputa comercial ou diplomática. Trata-se de uma batalha simbólica, na qual o controle da narrativa vale tanto quanto o controle dos mercados. E, neste front, a desinformação — camuflada de patriotismo — é a arma mais eficiente para desmobilizar resistências e normalizar a dependência. Fica clara a lição que se impõe: quem relativiza a soberania em nome de alianças ideológicas, não a defende — a vende.