
Deputados invocam cautela quando o crime veste terno
Marcelo Copelli
Revista Fórum
A semana que terminou com a operação policial que deixou mais de uma centena de mortos no Rio de Janeiro revelou uma contradição que já não pode ser disfarçada. De um lado, muitos deputados subiram à tribuna para celebrar a ação como prova de “força” e “coragem” do Estado.
De outro, as mesmas vozes votaram, horas depois, para impedir a urgência de um projeto que combate os criminosos de colarinho branco — aqueles que desviam bilhões e esvaziam a saúde, a educação e a segurança que dizem defender.
ESCOLHA DO INIMIGO – Dos cinquenta parlamentares que barraram a tramitação, trinta e cinco são do PL, partido do governador Cláudio Castro, que saudou a operação como marco na “guerra contra o crime”. É o tipo de ação em que se escolhe o inimigo antes de se definir o princípio.
Essa escolha revela um projeto político claro: trata-se de um combate ao crime que só se aplica a determinados corpos — os pobres, os negros, os periféricos. Não é política de segurança pública; é política de controle social.
Quando o alvo é o jovem da favela, mobiliza-se aeronaves, blindados, fuzis e discursos sobre “recuperar a ordem”. Quando o alvo é o empresário que financia campanhas, negocia em gabinetes e frequenta jantares com autoridades, a mesma bancada que gritou por “tolerância zero” descobre o valor da cautela, da lentidão, da “complexidade do tema”. A coragem que sobra para atirar falta para votar.
CONTRADIÇÃO – Há uma coerência cruel na definição de quem merece a força do Estado e quem merece sua proteção. A criminologia crítica mostra há décadas que o sistema penal brasileiro não foi construído para enfrentar a criminalidade que dissipa riqueza e sabota o funcionamento do Estado, mas para administrar populações consideradas descartáveis.
Por isso, enquanto a direita parlamentar faz espetáculo de operações letais nas comunidades, permanece silenciosa, hesitante e protetiva diante da sonegação fiscal em escala industrial. E esse valor não é abstrato: são hospitais que não abriram, escolas sem merenda, creches que nunca existiram, soldados sem equipamento, professores sub-remunerados, infâncias sem futuro. Mas nada disso mobiliza o mesmo fervor moral de combater “o inimigo no morro”. É que esse dá voto. O outro paga campanha.
A narrativa da “mão firme” funciona porque é simples, espetacularizável e direcionada a um inimigo visível. Já o combate à evasão fiscal exige enfrentar aliados, financiadores e arranjos de poder. E é exatamente aí que muitos parlamentares da direita, sobretudo do PL, recuam: não por falta de convicção, mas por excesso de compromisso com o que os sustenta.
ESCOLHA – Quando deputados aplaudem uma operação que deixa dezenas de mortos, mas negam urgência para enfrentar quem desvia bilhões, não estão discutindo segurança pública. Estão escolhendo quem vive e quem pode morrer. Estão decidindo quem merece justiça e quem merece proteção. Estão administrando privilégios, não princípios.
A violência não é política pública. É maquiagem para a omissão. A verdadeira segurança se constrói com investimento social, arrecadação justa, prevenção, redução de desigualdades e presença do Estado onde ele sempre faltou. Tudo o resto é retórica de guerra para manutenção de poder.
Enquanto a bala for para uns e a blindagem legal for para outros, enquanto a vida tiver pesos diferentes conforme a localidade e a renda, enquanto a coragem política continuar parando na porta dos escritórios e se concentrando nas vielas, o país seguirá repetindo o mesmo ciclo de sangue e abandono. E continuará morrendo, sempre, nos mesmos endereços.


/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/B/0/UQ2BM6S9G0IXJY74eRDg/111196564-files-brazilian-politician-eduardo-bolsonaro-son-of-jair-bolsonaro-speaks-during-the-a-1-.jpg)














