Luiz Felipe Pondé
Folha
A ideia de que nossa cultura está tomada por uma semântica terapêutica, isto é, contaminada por palavras e conceitos para os quais o único significado de tudo é algo psicológico ou psicopatológico, já é um clássico em crítica do comportamento. Mas, aparentemente, esse diagnóstico ganha força quando produtoras de conteúdo como a jovem britânica Freya India começam a falar dessa cultura da terapia nas redes sociais e para os geneZis —a geração Z.
Como ela bem reconhece, a origem desse diagnóstico data do famoso clássico de 1979 “Cultura do Narcisismo”, do historiador e crítico cultural Christopher Lasch.
MAL-ESTAR MODERNO – Nessa obra, ele identifica essa tendência a interpretar tudo que acontece na vida de uma pessoa como evento passível de tratamento terapêutico, e, pior, só passível de compreensão se traduzido em conceitos da psicologia. Se nunca o leu, você está algumas décadas atrasado em repertório para compreender muito o mal-estar que marca o século 21.
O diagnóstico de Lasch vem no contexto, como diz seu livro citado acima, da cultura do narcisismo. Sem me deter nela, isso significa que a personalidade narcísica, descrita pela psicanálise freudiana, se tornara uma cultura dominante de pessoas voltadas para sua frágil e miserável subjetividade, que busca se erguer como o clímax da humanidade, quando, na verdade, trata-se de uma subjetividade que lambe suas feridas narcísicas todo o tempo como se estas fossem temas caros à história do mundo.
DIREITO AO EGOÍSMO – De lá pra cá, isso se agravou muito porque, como previra Lasch, tratava-se do nascimento do culto das identidades, no caso, a do narcisista em seu direito de ser um egoísta com glitter.
A subjetividade expandida passou a ser um direito a ser reconhecido pelo Estado, pelas empresas, pelas escolas, pela diplomacia, enfim, por Deus.
“Sensibilidade terapêutica” é o termo que Lasch usa para descrever o fenômeno que ele identificara na produção cultural americana da sua época. Lembre-se: livro publicado em 1979, por isso, sempre tome cuidado quando achar que no mundo tudo começou quando nasceu seu primeiro dente definitivo ou com o seu iPhone 25.
CULTURA DA TERAPIA – Já em 2003, o sociólogo húngaro-canadense, hoje radicado em Bruxelas, Frank Furedi publicava seu “Therapy Culture” —ainda sem tradução no Brasil, até onde sei. Portanto, a expressão “cultura da terapia”, hoje citada em larga medida, é colocada em grande circulação com ele.
Tanto ele quanto Lasch pensaram essas transformações culturais e de comportamento num cenário de incertezas, culto da vulnerabilidade e de baixas expectativas —expressões que aparecem no subtítulo de suas duas obras.
Ou seja, ambos os scholars identificavam um processo de enfraquecimento das pessoas diante dos desafios do mundo, cujos sinais, no caso de Lasch, já apareciam no culto das fofocas dos talk shows da TV americana, assim como também no gosto e na demanda de que as pessoas abrissem suas vísceras diante das câmeras, o que hoje é um imperativo categórico nas redes sociais exigido pelos seguidores em geral. Quer engajar? Confesse suas misérias privadas e gere empatia. Brega, toda vida.
PSICOTERAPIAS – Já Furedi identificara o surgimento de termos do universo das psicoterapias na imprensa de língua inglesa na sua pesquisa ao longo da última década do século 20. Os jornalistas, pouco a pouco, passavam a usar esses termos nas suas análises e entrevistas da mídia em geral como verdades universais.
Aliás, os jornalistas são bons em erguer suas pequenas preferências teóricas em hermenêutica universal —hermenêutica em filosofia é a área que discute os modos e ferramentas de interpretação do mundo.
A educação, também, naufragava no tsunami do vocabulário terapêutico. Hoje, o quadro da educação é de grave piora. Logo não restará nada na educação que não seja a cultura da terapia e a ideologia como destruição do pensamento.
ESTAMOS DOENTES – No Brasil, a cultura da terapia transformou-se em contencioso jurídico usado pra todo lado, impedindo qualquer reflexão mais profunda sobre o fenômeno. No Brasil, as misérias produzidas nos países ricos se tornam sempre piores.
Um traço importante do diagnóstico de Furedi sobre a hegemonia da cultura da terapia na mídia e na educação é seu método de suspeita agressiva para com aqueles que recusam o fato que sempre algum diagnóstico psicopatológico cabe a eles. “Melhor”, como disse Furedi, confessar logo que é doente e se submeter. Isso hoje é o óbvio e ululante.
No caso específico de Freya India, ela aplica esses conceitos ao sofrimento das mulheres jovens, que estão muito mal, mas não perdem a pose de emancipadas.