STF, Planalto e o jogo de paciência — a novela da indicação de Messias

O triunfo que tomou as ruas do Rio, com a cidade rendida ao vermelho e preto

Vitória ficará inscrita na memória coletiva

Pedro do Coutto

O Rio de Janeiro viveu, na noite de sábado, uma daquelas jornadas que marcam uma geração inteira. A vitória monumental do Flamengo, que garantiu ao clube o tetracampeonato da Taça Libertadores da América, ultrapassou o território do esporte e se transformou em um fenômeno cultural, social e emocional. Não foi1 apenas um título. Foi um reencontro de um país com a sua paixão coletiva mais vibrante.

Desde a noite da final, quando o time dominou a partida de forma madura e segura — como destacaram análises de veículos como Globo Esporte, ESPN e Uol Esporte, apontando a superioridade técnica e a consistência tática do Flamengo — a sensação de que algo extraordinário estava acontecendo era evidente. A vitória começou no campo, mas se completou no coração dos torcedores. E isso ficou claro nas ruas.

MULTIDÃO – No domingo, um mar de gente tomou caminhos, avenidas e passarelas rumo ao Aeroporto Tom Jobim. Famílias inteiras deixaram suas casas nas primeiras horas do dia. Jovens com bandeiras amarradas ao corpo. Idosos que já testemunharam títulos antigos, mas que queriam ver de perto a nova geração de campeões.

A cena, registrada amplamente por jornalistas e transmissões ao vivo, lembrava outros momentos históricos da relação entre o Flamengo e o Rio — daqueles em que a cidade parece renunciar ao seu ritmo habitual para se entregar à celebração de um símbolo afetivo comum.

Era mais do que recepcionar um time. Era agradecer. Retribuir. Confirmar, com cada canto e cada lágrima, o que a torcida costuma repetir com orgulho: o Flamengo não é apenas um clube; é uma nação. E essa nação, espalhada de norte a sul, de leste a oeste, fez mais uma vez o Brasil parar. A força que parte das arquibancadas, das ruas e dos lares — aquilo que cronistas esportivos e sociólogos, como já mencionou Ronaldo Helal, chamam de “a mística rubro-negra” — se materializou de forma exuberante.

SENTIMENTO COLETIVO – Confundem-se, nesse tipo de vitória, o desempenho esportivo e o sentimento coletivo. O Flamengo entra em campo com onze jogadores, mas, na prática, carrega um país inteiro nas costas. A torcida exerce esse papel de 12º jogador com naturalidade: é ela que amplifica o entusiasmo, empurra, vibra e transforma o futebol em experiência emocional compartilhada. Na chegada dos campeões, a sensação era a de que ninguém ali era mero espectador. Todos se sentiam parte da conquista.

A cidade amanheceu rubro-negra. As ruas ainda exalam resquícios da celebração — buzinas isoladas, bandeiras penduradas em janelas, crianças imitando seus ídolos nos campos de terra, adultos revivendo lances da final como se os narrassem de dentro do estádio. E as comemorações não devem cessar tão cedo. O título, pelo peso histórico e pela intensidade afetiva que desperta, continuará ecoando ao longo do dia, da semana, talvez do ano.

Vitórias esportivas costumam ser efêmeras. Mas algumas, como esta, ultrapassam o tempo. A do Flamengo na Libertadores de 2025 — marcada pela mobilização monumental, pela comunhão nas ruas e pela reafirmação de identidade — é dessas que se inscrevem na memória coletiva. Uma vitória que, para milhões, não terminou no apito final. Ela apenas começou ali.

Lula, Alcolumbre e a batalha silenciosa pela indicação de Messias ao STF

O cerco se fecha: o Brasil diante de um retrocesso ambiental sem precedentes

Charge do Lila (Arquivo do Google)

Pedro do Coutto

A derrubada dos vetos ao novo marco do licenciamento ambiental abriu uma ferida profunda na já fragilizada política ambiental brasileira. Ao permitir que empresas potencialmente envolvidas em desmatamento e outras formas de degradação possam se autodeclarar em conformidade com normas ambientais, o país inaugura um capítulo de retrocesso que especialistas, organizações civis e instituições independentes classificam como o mais grave em quatro décadas.

O mecanismo da autodeclaração — vendido como modernização e desburocratização — funciona, na prática, como um atalho perigoso: ele elimina análises técnicas, enfraquece a fiscalização e desloca a responsabilidade do Estado para o próprio empreendedor, como se interesses econômicos e proteção ambiental fossem forças espontaneamente conciliáveis.

ABUSOS – Para completar, a descentralização das autorizações cria um mosaico normativo vulnerável à pressão de elites econômicas regionais, enfraquecendo a uniformidade das salvaguardas que antes eram estabelecidas pela esfera federal. O resultado é um terreno fértil para abusos, conflitos fundiários e danos irreversíveis a biomas sensíveis.

Com as garantias reduzidas, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais tornam-se ainda mais expostos. Territórios sem titulação definitiva — que já enfrentam histórico de invasões e grilagem — agora perdem etapas essenciais de consulta e proteção.

Em paralelo, relatos de articulação intensa de setores econômicos interessados na flexibilização, e a velocidade com que o Congresso derrubou os vetos, alimentam suspeitas de conivência, tráfico de influência e captura institucional. A sensação generalizada é de que se fecha um cerco não sobre empresas que degradam, mas sobre o próprio sistema de fiscalização, que vai sendo desmontado peça por peça.

MANOBRAS – O escândalo, como muitos ambientalistas apontam, não tem fim — não porque faltem denúncias, mas porque cada semana revela novas brechas, manobras políticas e avanços sobre áreas antes protegidas. O país assiste, praticamente sem freios, à possibilidade de expansão de obras, desmatamentos, mineração e empreendimentos de alto impacto sem a devida avaliação de risco.

O Brasil, que deveria ser protagonista da preservação ambiental global e exemplo de governança sustentável, arrisca desperdiçar capital diplomático, comprometer acordos internacionais e perder credibilidade justamente às vésperas de debates globais decisivos sobre clima e biodiversidade.

Nesse cenário, fica cada vez mais evidente que não se trata apenas de um embate técnico ou legal: trata-se de uma disputa moral, institucional e civilizatória. Entre a proteção do patrimônio natural e o avanço de interesses privados; entre a ciência e o improviso; entre o futuro e o lucro imediato. O país ainda tem caminhos de resistência — via sociedade civil, organismos independentes, pesquisadores e eventual reação do Judiciário —, mas a cada dia, com a nova regra em vigor, cresce o risco de danos irreversíveis. A história cobrará essa conta, e o Brasil precisará decidir, o quanto antes, de que lado quer estar.

Entre o capricho e a responsabilidade, a ausência que não se justifica

Motta e Alcolumbre faltam ao evento de sanção do IR no Planalto

Pedro do Coutto

Há gestos na política que ultrapassam o campo do protocolo e se instalam no terreno simbólico, onde verdadeiramente se mede a maturidade institucional de um país. A decisão de Hugo Motta e Davi Alcolumbre de não comparecerem ao ato em que o presidente Lula da Silva oficializou o reajuste da faixa de isenção do Imposto de Renda para rendas de até R$ 5 mil por mês pertence exatamente a esse campo: é um gesto pequeno, mas que produz sombras longas.

A medida anunciada por Lula — tecnicamente relevante, socialmente sensível e politicamente expressiva — deveria ter sido o tipo de ato público capaz de unir as principais lideranças do país em torno de um objetivo comum: aliviar a carga tributária de milhões de brasileiros, reorganizar critérios de justiça fiscal e sinalizar responsabilidade econômica.

COMPROMISSOS DE ESTADO – Em democracias consolidadas, movimentos desse porte são tratados como compromissos de Estado, não como eventos facultativos submetidos ao humor de parlamentares. Mas, ao faltar deliberadamente, Motta e Alcolumbre transformaram um ato de governo em palco para ressentimentos pessoais.

Um comportamento juvenil que fere a liturgia dos cargos que ambos ocupam. Não se trata aqui de alinhamento com o Executivo, mas de respeito à institucionalidade, ao cargo que representam e à maturidade política que se espera de dirigentes do Legislativo.

A justificativa implícita — o inconformismo com a não indicação de Rodrigo Pacheco ao Supremo Tribunal Federal — expõe algo ainda mais grave: uma leitura patrimonialista das instituições. O STF não é extensão dos desejos do Congresso, do Planalto ou de qualquer grupo específico. É uma Corte de Estado, e suas cadeiras não podem ser tratadas como moeda de troca, prêmio de consolação ou compensação por acordos não atendidos.

BOICOTE – Não existe, em nenhum manual republicano, base moral para um boicote dessa natureza. A escolha de ministros do Supremo é prerrogativa constitucional do presidente da República, que deve exercê-la de acordo com critérios técnicos, políticos e institucionais — e não como pagamento de promessas informais a chefes de Poder. Se Lula julgou que Pacheco não era o nome adequado, cabe aos demais atores respeitar essa decisão. Divergir, sim. Retaliar com ausência calculada, não.

Esse tipo de comportamento corrói algo profundo: o pacto tácito de responsabilidade entre os Poderes. Quando figuras centrais do Legislativo se permitem atitudes performáticas para sinalizar descontentamentos internos, enviam ao país a mensagem de que as prioridades nacionais podem ser atropeladas por disputas de bastidores. É a política convertida em teatro de vaidades.

SOLAVANCOS – Mais do que um episódio isolado, esse gesto ajuda a explicar por que o Brasil tantas vezes avança aos solavancos: porque ainda convivemos com lideranças que se esquecem de que cargos públicos exigem grandeza — não apenas habilidade de articulação. O país não pode ser refém da frustração de parlamentares que tratam a institucionalidade como extensão de seus desejos individuais.

Num momento em que o Brasil precisa de estabilidade, cooperação e foco nas agendas estruturais, atitudes assim não apenas surpreendem: envergonham. É preciso lembrar, todos os dias, que a política não é sobre quem foi lembrado ou preterido para um cargo; é sobre como as lideranças servem ao país — e não a si mesmas.

Prisão leva Bolsonaro a viver numa cela de apenas 12 metros quadrados

Rombo das contas públicas e déficit das estatais ameaçam o governo Lula

O delírio, a tornozeleira e a crise de responsabilidade

Defesa tenta justificar ação devido ao efeito de medicamentos

Pedro do Coutto

Assumiu um caráter ainda mais dramático o episódio que marcou a tentativa de Jair Bolsonaro de livrar-se da tornozeleira eletrônica, gesto que o próprio ex-presidente atribuiu a um suposto surto provocado por medicamentos.

Ao apresentar-se como vítima de uma combinação farmacológica que teria gerado paranoia e alucinações, Bolsonaro buscou explicar por que tentou abrir o equipamento com um objeto metálico — ato que, para a Justiça, representou clara violação das medidas impostas e sinal de risco concreto de fuga, especialmente diante do histórico recente de aliados que cogitaram buscar asilo em embaixadas em Brasília.

TENSIONAMENTO – A versão clínica, embora não deva ser descartada levianamente — efeitos adversos de remédios como os citados por seus médicos podem, de fato, gerar confusão mental em pacientes idosos —, não elimina o peso político e jurídico do episódio. A Justiça não analisou apenas o gesto, mas o contexto: um ex-presidente condenado por tentar subverter a ordem constitucional, com forte base mobilizada e histórico de tensionamentos com o Supremo Tribunal Federal.

Nesse cenário, a manipulação da tornozeleira não era apenas um incidente doméstico, mas um possível prenúncio de evasão. Por isso, a decisão de converter a prisão domiciliar em preventiva foi apresentada como necessária para preservar a autoridade do processo e impedir novas violações.

No plano político, a narrativa do “surto medicamentoso” ganhou contornos de estratégia. Não é raro, em momentos de crise, que agentes públicos tentem humanizar erros por meio de relatos de fragilidade pessoal, enquanto seus adversários utilizam o mesmo episódio como evidência de irresponsabilidade.

GRAVIDADE – A saúde mental, nesse jogo, corre o risco de ser convertida em instrumento retórico: de um lado, para atenuar a gravidade do ato; de outro, para reforçar a imagem de alguém incapaz de respeitar deveres legais. O debate público, como de costume, preferiu a polarização às nuances, reduzindo o episódio a mais um capítulo da guerra política permanente.

A repercussão internacional reforçou a dimensão institucional do caso. Jornais estrangeiros destacaram a manipulação do monitoramento eletrônico como símbolo de um país que ainda convive com as consequências de um ataque frontal às suas regras democráticas. Nesse sentido, o episódio é menos sobre remédios e mais sobre responsabilidade: quando um ex-presidente tenta violar instrumentos de controle judicial — seja por delírio, seja por cálculo —, coloca em xeque a estabilidade das instituições.

O Brasil precisa, neste momento, de duas atitudes complementares: compaixão e rigor. Compaixão para tratar com seriedade eventuais problemas de saúde, sem ironia nem desprezo; rigor para aplicar a lei de forma igual, sem transformar fragilidades pessoais em salvo-conduto político. O discurso do delírio não pode se sobrepor ao dever de responsabilidade, assim como a punição não pode ignorar garantias fundamentais. O equilíbrio entre humanidade e firmeza é o que preserva a democracia de seus extremos — e impede que crises pessoais se tornem surtos institucionais.

Bolsonaro, a tornozeleira e o colapso final de sua narrativa política

O escândalo do Master: quando poder, política e previdência colidem

O recuo de Trump e o esvaziamento da estratégia bolsonarista

Como fundos públicos ignoraram sinais e mergulharam na crise do Banco Master

O colapso do Banco Master e a fatura que sempre chega ao Tesouro

Ilustração Zero Hora

Pedro do Coutto

Mais uma vez, em matéria de corrupção, descontrole e risco sistêmico no setor financeiro, a história se repete. A liquidação extrajudicial do Banco Master, determinada pelo Banco Central, expôs não apenas o colapso de uma instituição que já vinha dando sinais de deterioração, mas também a fragilidade estrutural de um modelo em que fundos de pensão — responsáveis pela segurança previdenciária de milhões de trabalhadores e servidores — acabam funcionando como amortecedores dos erros e das fraudes do sistema bancário.

O caso seria apenas mais um episódio de crise de liquidez se não envolvesse diretamente fundos de previdência que carregam recursos públicos, como no caso do Rio de Janeiro, onde o Rioprevidência se viu subitamente ameaçado pela possibilidade de não receber valores significativos aplicados em títulos do Master.

CONTRADIÇÕES – Segundo reportagem de Ana Teófilo, Thais Barcelos e Bruna Lessa, publicada em O Globo, o quadro revela contradições profundas e recorrentes em situações desse tipo: a vulnerabilidade dos fundos de pensão diante de bancos que oferecem rentabilidades atraentes, o peso das decisões de gestores pressionados por resultados imediatos e a ausência de uma fiscalização suficientemente preventiva — especialmente porque os fundos de previdência complementar, ainda que cuidem de dinheiro público e privado simultaneamente, não estão sujeitos à mesma ação direta e antecipada do Executivo. Ao contrário, convivem com brechas regulatórias que permitem decisões arriscadas sem supervisão rigorosa.

O Master, agora em liquidação, dificilmente terá patrimônio suficiente para pagar todos os credores. E quando um banco dessa natureza entra em colapso, o impacto não fica restrito ao setor financeiro: ele se espalha pelo Estado, pelos servidores e pelo Tesouro.

Isso ocorre porque fundos de pensão recebem contribuições dos trabalhadores, aportes do poder público e recursos previdenciários cuja natureza é, justamente, garantir segurança de longo prazo. Quando um fundo desse tipo sofre uma perda relevante — ainda que apenas potencial — a fatura recai, cedo ou tarde, sobre o Estado. Foi assim em outros episódios semelhantes e, ao que tudo indica, está sendo assim novamente.

ALERTA NACIONAL – O caso do Rio de Janeiro ilustra com clareza esse desequilíbrio. A simples perspectiva de que o Rioprevidência pudesse deixar de receber valores por falta de liquidez do Master acendeu um alerta nacional: se o fundo enfrentasse dificuldades, caberia ao Tesouro estadual — já pressionado — arcar com as obrigações previdenciárias. Não é uma anomalia: é a mecânica perversa de um sistema em que o risco privado pode rapidamente se tornar problema público.

A investigação sobre o Master, que envolve indícios de fraude, gestão temerária e operações irregulares, adiciona um componente ainda mais grave ao cenário. Não se trata apenas de má alocação de recursos, e sim de possíveis práticas criminosas que enganaram investidores, fundos e o próprio regulador. Nos bastidores, cresce a cobrança por responsabilização não apenas dos controladores do banco, mas também de gestores de fundos que assumiram posições arriscadas sem transparência suficiente.

Esse episódio expõe a necessidade urgente de repensar o modelo de governança e supervisão dos fundos de previdência. Embora manejem recursos essenciais para milhões de aposentados e futuros aposentados, muitos desses fundos operam com níveis de controle desiguais, estruturas decisórias suscetíveis a pressões políticas e um apetite por risco frequentemente incompatível com sua responsabilidade social. A linha que separa má gestão de crime financeiro é, por vezes, tênue — e quando se rompe, quem paga é o contribuinte.

TRANSPARÊNCIA – O colapso do Banco Master deveria servir de virada de chave institucional. O país precisa de regras mais sólidas de transparência, de limites mais claros para investimentos de fundos públicos, de um monitoramento mais rigoroso e, sobretudo, de mecanismos que impeçam que prejuízos privados sejam novamente empurrados para o colo do Tesouro.

A repetição constante desse enredo — bancos em crise, fundos de pensão expostos, servidores ameaçados, Estado acionado como fiador involuntário — não é coincidência: é resultado direto de um sistema que permite, estimula e normaliza riscos que jamais deveriam recair sobre quem paga impostos e contribui mensalmente para sua própria aposentadoria.

A liquidação do Master ainda terá desdobramentos longos, mas seu significado já está claro: enquanto o país não assumir a tarefa de fortalecer a governança dos fundos de pensão e de fechar as portas para a captura privada de recursos previdenciários, crises como essa continuarão se repetindo. E, como sempre, com o mesmo desfecho: a conta final chega, e quem paga não são os bancos — são os trabalhadores, os servidores e a sociedade.

A estabilidade esconde fraturas: inflação na meta e abalo no sistema financeiro

Marketing do crime nas redes sociais: faz o tráfico virar ferramenta de poder

Facções ocupam o vácuo do Estado, que se transforma em refém do crime

Serviços irregulares tornaram-se negócios altamente lucrativos

Pedro do Coutto

A reportagem de Patrick Camporez e Sarah Teófilo, publicada em O Globo, neste domingo, revela um retrato devastador da fragilidade institucional brasileira: facções criminosas passaram a ameaçar servidores, empresas concessionárias e agentes públicos para impedir a interrupção de serviços ilegais, consolidando um sistema paralelo que hoje opera em pelo menos quatro estados — Rio de Janeiro, Pernambuco, São Paulo e Mato Grosso.

Os relatórios da Polícia Federal mostram que, em diversas regiões, o Estado deixou de ser autorizado a funcionar. Não é apenas a polícia que enfrenta restrições: técnicos de energia e internet, equipes de manutenção, fiscais e funcionários de serviços essenciais relatam ser impedidos de entrar em áreas dominadas por milícias e facções, que tratam bairros inteiros como territórios sob jurisdição própria.

CONTROLE –  A situação é tão grave que, segundo o material obtido pela reportagem, há locais onde criminosos não apenas controlam a oferta clandestina de serviços, mas também determinam que nenhuma intervenção oficial — mesmo quando necessária — seja realizada. É o crime ocupando não só o espaço físico, mas a própria função regulatória do Estado.

Esse fenômeno, antes associado sobretudo ao Rio de Janeiro, agora se espalha por outros estados com características locais distintas, mas com o mesmo padrão: grupos armados que operam como administradores de áreas urbanas, cobrando taxas, gerenciando redes clandestinas de internet e energia, impondo regras de circulação e ameaçando qualquer funcionário público que tente restabelecer a legalidade.

A reportagem mostra que serviços irregulares, como a distribuição clandestina de sinal de internet ou o fornecimento ilegal de energia, tornaram-se negócios altamente lucrativos, e que suas interrupções são tratadas pelas facções como afrontas diretas à sua autoridade, justificando ameaças e ataques.

PARADOXO – Essa realidade estabelece um paradoxo perverso: quanto mais o Estado se vê incapaz de entrar, mais a população fica dependente da estrutura criminosa que ocupa seu lugar. Moradores convivem com a ambiguidade de serem, simultaneamente, vítimas e reféns de modelos ilegais que suprem, ainda que de forma precária, necessidades básicas que o poder público não conseguiu garantir.

O avanço dessa governança criminosa expõe, de forma nua e crua, uma falência parcial das instituições responsáveis por assegurar a ordem, a cidadania e a presença territorial do Estado. Não se trata apenas de violência armada ou tráfico de drogas, mas de uma disputa por autoridade e legitimidade.

Quando uma facção determina que técnicos não podem desligar uma conexão clandestina ou realizar um reparo essencial, ela está afirmando, na prática, que sua palavra vale mais que a lei. E quando essa lógica se repete em diferentes regiões do país, o problema deixa de ser local para se tornar um desafio nacional.

POLÍTICAS PÚBLICAS –  A ausência prolongada de serviços formais cria um ecossistema em que o poder paralelo se fortalece, e a retomada desses territórios se torna progressivamente mais difícil, pois não exige apenas força policial — exige políticas públicas, investimentos contínuos e reconstrução de confiança.

A situação descrita pelos documentos da PF e pela reportagem não é fruto de um episódio isolado, mas de décadas de negligência, de políticas descontínuas e de um Estado que sempre oscilou entre a presença armada e a ausência cotidiana. O resultado é a formação de enclaves onde a legalidade foi substituída pela lógica econômica e coercitiva do crime.

O desafio que se coloca agora é enorme e exige coragem política: retomar áreas dominadas por facções não é apenas entrar com operações pontuais, mas fincar raízes, reconstruir serviços públicos, garantir segurança de forma permanente e devolver à população a ideia de que o Estado existe para protegê-la e servi-la. A reportagem apenas confirma o tamanho da encruzilhada — e do dever que o país tem pela frente.

Uma vitória apenas parcial no tarifaço, mas estratégica para o governo Lula

Trump reduz tarifas que atingem café, carne bovina e frutas

Pedro do Coutto

A decisão de Donald Trump de reduzir as tarifas sobre produtos brasileiros como carne bovina, café, frutas tropicais e suco de laranja representa uma vitória parcial — mas politicamente relevante — para o governo Lula.

Depois de meses de tensão causada pelo tarifaço americano, que havia elevado impostos de importação para até 50% e ameaçava diretamente setores cruciais do agronegócio brasileiro, o recuo de Washington trouxe um alívio imediato tanto para produtores quanto para exportadores.

RESTRIÇÕES – O suco de laranja, por exemplo, um dos produtos mais afetados pela taxação e responsável por cerca de US$ 1 bilhão anuais em vendas para os EUA, deixa de sofrer a restrição extrema que limitava seu consumo no mercado americano. A mesma lógica vale para o café, para a carne bovina e para as frutas tropicais, que voltam a competir com mais equilíbrio dentro de um dos maiores mercados consumidores do mundo.

Na prática, Trump retirou diversos produtos da tarifa de 50%, recolocando-os na alíquota base de 10%, o que devolve previsibilidade às operações e reduz o impacto imediato no fluxo de comércio.

Mesmo sendo um alívio parcial, o gesto tem efeitos políticos significativos. Para Lula, o recuo americano serve como demonstração de capacidade diplomática em um ambiente global marcado por disputas comerciais agressivas. É também uma vitória simbólica contra o discurso de grupos internos que apostavam na ideia de que apenas uma postura submissa a Washington traria benefícios ao Brasil — muitos dos quais chegaram a erguer bandeiras dos Estados Unidos em manifestações domésticas, como se um alinhamento automático fosse suficiente para garantir vantagens econômicas.

FLEXIBILIZAÇÃO – Nesse episódio, o que se viu foi justamente o oposto: foi a insistência diplomática brasileira, aliada à pressão sobre o governo americano — que enfrenta aumento de preços internos e descontentamento do consumidor — que abriu espaço para a flexibilização tarifária.

Ainda que não resolva tudo, o desfecho mostra a essência da política internacional: raramente se conquista tudo de uma só vez; avança-se por etapas, acumulando pequenos ganhos que, somados, produzem efeitos concretos. Há muito a ser negociado, ajustado e redefinido entre Brasil e Estados Unidos, especialmente em um cenário de volatilidade econômica e forte carga eleitoral nos dois países.

Mas o movimento de Trump, ainda que limitado, reposiciona o Brasil com mais vantagem no tabuleiro comercial e oferece a Lula uma narrativa politicamente valiosa — a de que, mesmo em tempos difíceis, a diplomacia ainda funciona, e que resultados reais podem surgir mesmo quando a vitória, à primeira vista, parece apenas parcial.

O mito do voto independente e os limites reais da sucessão presidencial

Charge do Cazo (Facebook)

Pedro do Coutto

As pesquisas mais recentes sobre a disputa presidencial de 2026 revelam um fenômeno que parece novo, mas que, ao ser confrontado com a lógica institucional brasileira, perde muito da força narrativa que lhe tem sido atribuída. Segundo dados da Quaest, cresce a parcela do eleitorado que afirma estar cansada da polarização permanente entre Lula e Bolsonaro — ou, em termos mais amplos, entre lulismo e bolsonarismo — e que declara preferir um nome “independente” para a sucessão do próximo ano.

Esse sentimento, compreensível diante do desgaste acumulado de uma década de conflitos políticos incessantes, vem sendo lido apressadamente como indício de que os governadores Tarcísio de Freitas, Ratinho Júnior, Ronaldo Caiado ou Romeu Zema poderiam encarnar essa alternativa “fora dos extremos”.

CONTRADIÇÃO – Mas a própria noção de voto independente carrega uma contradição estrutural: na prática, nenhuma candidatura presidencial se sustenta sem articulação partidária, alianças nacionais e musculatura eleitoral, elementos que, por definição, anulam qualquer pretensão de independência absoluta.

A ideia de que um eleitorado “autônomo” poderia migrar em bloco para uma candidatura alternativa e, assim, inviabilizar Lula da Silva nas urnas é sedutora como hipótese, mas irreal quando confrontada com o desenho institucional do pleito brasileiro.

A eleição é em dois turnos, e o segundo turno funciona como um mecanismo de reenquadramento político: nele, necessariamente, haverá Lula — ou alguém sustentado pelo lulismo — enfrentando um antagonista viável. Pesquisas que testam apenas cenários de primeiro turno, sem projetar combinações plausíveis de segundo, podem induzir a leituras equivocadas sobre a real capacidade de esse “centro independente” romper a polarização.

PRINCIPAL ATOR POLÍTICO – No Brasil, não existe sucessão presidencial sem enfrentar o protagonista; e Lula, goste-se ou não, permanece o principal ator político do país. Além disso, o desempenho dos chamados nomes alternativos não confirma, por ora, a narrativa da ruptura. Embora pesquisas registrem desejo por renovação, os governadores que surgem como alternativas continuam exibindo níveis de intenção de voto significativamente inferiores e não demonstram possuir, até o momento, a capacidade de agregar coalizões nacionais sólidas.

A distância entre o desejo por novidade e a materialização de uma candidatura competitiva é larga — e, historicamente, poucos conseguiram transpor esse desfiladeiro. Em cenários simulados, Lula segue liderando todos os confrontos diretos, o que reforça a ideia de que o antipetismo, isoladamente, não estrutura mais uma candidatura suficientemente ampla.

SATURAÇÃO – O discurso do “voto independente” opera, então, mais como diagnóstico emocional do eleitorado do que como indicador eleitoral concreto. Ele expressa saturação, fadiga, talvez anseio por um pacto político menos tóxico. Mas não oferece, ainda, um caminho institucional viável. Sem partido, sem alianças, sem palanque nacional — e sem protagonismo claro no segundo turno — nenhuma alternativa se consolida. E mesmo quando se apresenta como “anti-polarização”, esse conjunto de nomes inevitavelmente se alinha, na prática, a um dos blocos já existentes.

Em síntese, o país vive um paradoxo: o eleitor quer se libertar da polarização, mas o sistema eleitoral, a força dos partidos, a dinâmica dos dois turnos e o peso de lideranças estabelecidas mantêm a disputa ancorada na velha arquitetura. A sucessão de 2026 pode até acolher novos personagens, mas dificilmente romperá — ao menos com os dados atuais — a estrutura binária que marca o debate político nacional há anos. O voto independente existe como desejo; como projeto de poder, ainda não.

O embaraço do “PL antifacções”: quando o combate ao crime vira palco da disputa política

Inflação no papel, desconforto no carrinho: o abismo entre o índice e a vida real